quinta-feira, outubro 14, 2004

Danos Colaterais

Collateral é a proposta mais recente de Michael Mann, um dos cineastas mais interessantes da Hollywood de hoje.

A história apresenta-se de forma simples: um assassino chega a Los Angeles para matar 5 pessoas numa única noite. Para andar pela cidade, escolhe seguir num táxi. A partir daqui desenvolve-se a acção.

Está claro que, com Michael Mann, a acção não ficaria por aqui. O filme começa por fazer uma apresentação simples das personagens: o Taxista - excelente Jamie Foxx, e o Assassino(1) - Tom Cruise. O Taxista é apresentado como um homem conformado com a sua vida, que sonha com um negócio próprio que vai preparando em todos os detalhes enquanto faz as suas jornadas nocturnas de táxi. Mais tarde viremos a saber que está ainda preso à sua mãe, a quem mente sobre o seu trabalho para a fazer feliz. O Assassino é, basicamente, um niilista. Isso mesmo pode ser visto na sua sequência incial, em que chega ao aeroporto, fato de bom corte, óculos escuros, barba rala e um ar de desinteresse por tudo o que o rodeia. Esse será tal o momento de definição do filme: a apresentação de um homem com uma missão mas sem interesse em nada.

Chamaram à personagem de Cruise "um samurai dos tempos modernos", um homem cujo objectivo na vida é apenas cumprir as suas missões de morte. Esta definição surge, obviamente, em alusão à sua personagem de The Last Samurai. O problema é que Cruise não consegue dar à sua personagem a espessura, ou falta dela, que a mesma requer. Nos momentos pseudo-filosóficos, Cruise parece sempre pouco à vontade nos diálogos: os momentos jazzísticos com referências "cool" a Miles Davis saem forçados, rápidos e com demasiada ausência da vibração jazz. Sente-se que é tudo artificial, programado, falta o improviso e a pausa, o silência e a contemplação que se desejam para esses momentos. As cenas poderiam funcionar noutro filme, mas neste soam a falso. Quanto às cenas em que o Assassino é revelado como alguém sem profundidade, que se limita a debitar umas quantas ideias nas quais nem sequer acredita, Cruise deixa passar a sensação que haveria mais, que a personagem é mais que aquilo que parece. Ou seja, dá-lhe espessura. Isto acaba por arrasar com o seu desempenho, o qual apenas se salva nas sequências de acção pura.

Jamie Foxx, por outro lado, tem o oposto. Consegue criar ua personagem frágil, embaraçada pelas circunstâncias que fogem ao seu controlo, ausente num mundo hostil. Nos únicos momentos em que oTaxista tem que se alcandorar perante as circunstâncias, Jamie Foxx dá ao papel imagens de força e de determinação, numa acção em tudo oposta às de Cruise. Esta nem sequer é a primeira vez em que Foxx demonstra esta capacidade: a anterior tinha sido também num filme de Mann, Ali, em que desempenha um papel de judeu negro e alcoolizado que é o anjo inspirador de Muhammed Ali. Um dos seus melhores momentos surge quando, num clube, é obrigado a fazer-se passar pelo Assassino e confrontas o seu empregador, papel representado por Javier Bardem (cada vez maior na sua arte de representar, está impressionante).

No resto, Mann foge a criar personagens muito complexas. Jada Pinkett Smith recebe uma personagem com algo para mostrar, mas muito pouco para trabalhar. Os outros actores têm uma passagem tão efémera quanto simbólica: são apenas alvos para o Assassino. A verdadeira grande personagem de Mann acaba por ser a Los Angeles nocturna, território de caça, seja sexual, simbolizada nos clubes de dança, seja musical, no clube de jazz, ou então mesmo de caça pura, simbolizada pelo Assassino e pelo coiote que, num momento sublime, passa em frente ao táxi.

Mann, tal como tinha feito no passado, mostra o seu gosto pela paisagem urbana nocturna, uma paisagem urbana que lhe parece permitir filmar o lado obscuro da natureza humana. No mundo obscuro de Los Angeles, consegue criar uma imagem estilizada - que ameaça tornar-se na sua marca pessoal - que serve à natureza dúbia do Assassino e que permite ao filme algumas das suas melhores sequências.

A saber: a do tiroteio na discoteca. Espaço claustrofóbico, ampliado pelo número de pessoas em volta dos personagens, atiradores como os cegos na fábula(2), um alvo que percebe que o é mas sem nunca saber o que se passa à sua volta. No meio da confusão, Mann nunca perde o fio à meada e consegue que nós também o sigamos. Uma cena de acção do melhor dos últimos anos (a atirar os elogios a Bourne Supremacy para o fundo lamacento do Loch Ness).

A outra sequência é a do escritório, já ao amanhecer, quando se começam a ver os primeiros raios de sol em espaços escuros e que permitem desenhar contornos algo fantasmagóricos num espaço - novamente - fechado. Uma sequência que tem tanto de suspense como de claustrofobia: tanto das personagens como dos espectadores.

O final, apesar de interessante, especialmente devido aos melhores momentos de Tom Cruise, acaba por desiludir na sua indiferença. Cai mal no filme, especialmente dado o tom desenvolvido anteriormente.

Conclusão: um bom filme, sem dúvida. Tal como todos os filmes de Mann, poderia ter uns 20 minutos menos, mas não se dá o dinheiro por mal empregue. Ainda assim será o seu filme mais fraquinho dos últimos anos.

(1) - Assassino vem de Hashashin, uma tribo de origem árabe que era "contratada" durante o tempo das cruzadas para assassinatos especializados que apenas podiam ser realizados com o sacrifício da própria vida. Para chegarem ao estado mental desejado, ingeriam drogas alucinogénicas: haxixe. Daí o nome. Neste filme Cruise é o Hashashin moderno, capaz de assassinatos impossíveis que, no fim, paga com a vida, e a sua droga é o jazz.

(2) - A fábula dos cegos consiste em três cegos tentando descrever um elefante. Um toca na pata e diz "Um elefante é como uma árvore", o segundo na tromba e diz "Um elefante é como uma corda" e o terceiro na cauda e diz "Um elefante é como uma serpente". Cada um descreve o que "vê" mas ninguém percebe o que se passa no geral.