Fez-se um filme em Portugal
(artigo também em acabra.net)
Há duas maneiras úteis de olhar para o novo filme de João Canijo: enquadrando-o ou na obra do realizador ou no panorama global do cinema português.
João Canijo sempre foi um marginal especial numa cinematografia particularmente interessada em não repensar o conceito de autor. Escolhendo mostrar as personagens e histórias que toda a gente vê, mas de quem ninguém fala, conseguiu criar uma obra em que Portugal é retratado através dos aspectos mais resquiciais da sua personalidade enquanto país. Canijo filma o pimba, a pobreza, o sujo, o feio, em suma, o iníquo, e não tem pejo em mostrá-lo. Linhas constantes na sua obra são as relações familiares, o sexo, um certo asco quanto à dimensão física do humano e a morte. Simultaneamente, Canijo consegue basear o seu tratamento destes temas tanto em modelos clássicos do cinema (o road-movie, o western) como em géneros populares portugueses. Com “Noite Escura”, Canijo consegue concentrar tudo aquilo que sempre tem feito, ou seja, Canijo entendeu-se consigo próprio e chegou à melhor maneira de ser Canijo: filmou a história de uma noite numa casa de alterne, indo buscar elementos tanto à tragédia grega (“Noite Escura” é inspirada em “Ifigénia em Aulis”, de Eurípides) como às histórias de faca e alguidar. Para além do mais, o realizador é dos que em Portugal melhor uso faz da cor enquanto recurso expressivo e isso é particularmente importante quando se fala de um modo que prima por escapar ao naturalismo. Do ponto de vista técnico, “Noite Escura” é inatacável, o que é de louvar num país onde tantas vezes se chega ao fim da rodagem sem dinheiro suficiente para o som.
É por aqui que “Noite Escura” consegue fazer a sua marca na história do cinema português. É um filme denso, mas filmado com um elenco reduzido e com um número limitado de décors. A câmara de Mário Castanheira é simplesmente fabulosa, sabendo usar com mestria os sempre arriscados primeiros-planos e os planos-sequência, de um modo suspenso que traduz excepcionalmente o flutuar lúbrico e a erosão de valores e conjugado com uma montagem fluidíssima de João Braz e Jackie Bastide. “Noite Escura” é precisamente isso, ou seja, um filme fundamentalmente moral, que não é o mesmo que moralista. É ainda um filme cujo argumento foi fruto de uma pesquisa que se prolongou durante dois anos, o que se nota, e tem fabulosas interpretações - Canijo filma com actores que conhece e com os quais se entende bem, e é injusto realçar apenas Beatriz Batarda. Em suma, “Noite Escura” é brilhante, tanto na parte técnica, dimensão em que o cinema português claramente tem progredido, como na parte artística, a grande armadilha, sempre tão propensos que somos a deixar-nos embalar pela toada pseudopoética de um monólogo para nós e mais ninguém. Canijo encabeça, como seu mais experiente representante, uma nova maneira do cinema em Portugal, livre do cânone da Escola Superior de Cinema, sendo que estará acompanhado nessa renovação criativa por António Ferreira e pouco mais (já que o corte que Ivo Ferreira anunciou foi mais um fogacho do que outra coisa).
“Noite Escura” foi filmado no limitado e pequeno meio português, surpreeende pelo seu equilíbrio interno e, como não fica de boca aberta e língua pendurada a a autocontemplar-se, é um portento de cinema. Quem dera que mais filmes pudessem dizer o mesmo.
Há duas maneiras úteis de olhar para o novo filme de João Canijo: enquadrando-o ou na obra do realizador ou no panorama global do cinema português.
João Canijo sempre foi um marginal especial numa cinematografia particularmente interessada em não repensar o conceito de autor. Escolhendo mostrar as personagens e histórias que toda a gente vê, mas de quem ninguém fala, conseguiu criar uma obra em que Portugal é retratado através dos aspectos mais resquiciais da sua personalidade enquanto país. Canijo filma o pimba, a pobreza, o sujo, o feio, em suma, o iníquo, e não tem pejo em mostrá-lo. Linhas constantes na sua obra são as relações familiares, o sexo, um certo asco quanto à dimensão física do humano e a morte. Simultaneamente, Canijo consegue basear o seu tratamento destes temas tanto em modelos clássicos do cinema (o road-movie, o western) como em géneros populares portugueses. Com “Noite Escura”, Canijo consegue concentrar tudo aquilo que sempre tem feito, ou seja, Canijo entendeu-se consigo próprio e chegou à melhor maneira de ser Canijo: filmou a história de uma noite numa casa de alterne, indo buscar elementos tanto à tragédia grega (“Noite Escura” é inspirada em “Ifigénia em Aulis”, de Eurípides) como às histórias de faca e alguidar. Para além do mais, o realizador é dos que em Portugal melhor uso faz da cor enquanto recurso expressivo e isso é particularmente importante quando se fala de um modo que prima por escapar ao naturalismo. Do ponto de vista técnico, “Noite Escura” é inatacável, o que é de louvar num país onde tantas vezes se chega ao fim da rodagem sem dinheiro suficiente para o som.
É por aqui que “Noite Escura” consegue fazer a sua marca na história do cinema português. É um filme denso, mas filmado com um elenco reduzido e com um número limitado de décors. A câmara de Mário Castanheira é simplesmente fabulosa, sabendo usar com mestria os sempre arriscados primeiros-planos e os planos-sequência, de um modo suspenso que traduz excepcionalmente o flutuar lúbrico e a erosão de valores e conjugado com uma montagem fluidíssima de João Braz e Jackie Bastide. “Noite Escura” é precisamente isso, ou seja, um filme fundamentalmente moral, que não é o mesmo que moralista. É ainda um filme cujo argumento foi fruto de uma pesquisa que se prolongou durante dois anos, o que se nota, e tem fabulosas interpretações - Canijo filma com actores que conhece e com os quais se entende bem, e é injusto realçar apenas Beatriz Batarda. Em suma, “Noite Escura” é brilhante, tanto na parte técnica, dimensão em que o cinema português claramente tem progredido, como na parte artística, a grande armadilha, sempre tão propensos que somos a deixar-nos embalar pela toada pseudopoética de um monólogo para nós e mais ninguém. Canijo encabeça, como seu mais experiente representante, uma nova maneira do cinema em Portugal, livre do cânone da Escola Superior de Cinema, sendo que estará acompanhado nessa renovação criativa por António Ferreira e pouco mais (já que o corte que Ivo Ferreira anunciou foi mais um fogacho do que outra coisa).
“Noite Escura” foi filmado no limitado e pequeno meio português, surpreeende pelo seu equilíbrio interno e, como não fica de boca aberta e língua pendurada a a autocontemplar-se, é um portento de cinema. Quem dera que mais filmes pudessem dizer o mesmo.
<< Home