segunda-feira, outubro 18, 2004

Desiludido

Vi, finalmente, The Terminal. Não fiquei impressionado, para dizer a verdade. Sem dúvida que é um bom filme, tudo no lugar certo e a acontecer no momento exacto. Indo mais longe direi que é um filme perfeito. O problema é que é precisamente isso: perfeito. Sem mais. Sem o golpe de asa que o faria ascender ao universo dos filmes de eleição. Sim, eu sei que muitos há - essencialmente autores de blogues - que discordarão de mim. Que este é possivelmente o melhor Spielberg. Que Tom Hanks está sublime, que, que, que...

Como o Miguel Galrinho disse, num comentário abaixo, e muito bem, a desilusão é tanto maior quanto maiores forem as expectativas. As minhas expectativas, pelo que vinha sendo dito, eram muito altas. O que vi foi, contudo, um filme sem a chama que transformou, por exemplo, Jaws numa referência do terror e suspense ou a sequência inicial de Saving Private Ryan como a, talvez, melhor sequência de guerra da história do cinema.

Primeiro ponto: falta de surpresa. O filme é previsível, desde o óbvio momento em que se sabe que Viktor não sairá pelas portas quando lhe dão a oportunidade (o que é natural, afinal de contas o filme acabaria aí), passando pela sua requisição como tradutor num momento difícil até terminar no "Vou para casa" já no táxi. O filme é previsível em todos os pontos. Tucci tem que ser obviamente um mau muito mau e asqueroso, que liga mais às regras e à sua ambição que ao resto. Zeta-Jones tem que ser uma assistente de bordo obviamente disfuncional, apesar de imensamente gira, que acaba por se interessar por um homem que nada tem que o distinga (o grande trunfo de Tom Hanks para o seu estrelato). Viktor tem que ser um homem altamente íntegro e fiel aos seus princípios e amigos desde o início ao fim do filme. As personagens são estereótipos e ficam fiéis a isso mesmo desde o início ao fim do filme.

Segundo ponto: credibilidade. É ridículo que coloquem Viktor numa situação de não perceber quando lhe pedem o passaporte. Aparentemente nem a palavra "Passaporte" entenderá. Isto tanto mais é estranho quanto a palavra é aproximadamente igual em todas as línguas, incluíndo - salvo erro - o russo (ou derivada, como é suposto ser a língua do país inventado para o filme). Em todo o caso, um absoluto desconhecimento da língua não o impede de aprender o inglês em apenas algumas semanas através de guias turísticos de Nova Iorque. O desconhecimento da língua também não parece ser obstáculo a que o outro russo, que surge mais tarde na história, aprenda a dizer "cabra - goat" mesmo sem ser ensinado. Curioso também que num aeroporto tão importante não exista nenhum tradutor de russo a menos de 1 hora de distância. Outra coisa curiosa, apesar de provável, uma vez que não conhecemos o métier de Viktor, é que ele aparente ser um especialista em construção civil, incluindo alvenaria, carpintaria, canalização e instalações eléctricas.

Terceiro ponto: relações inter-personagens. Não há, para dizer a verdade, verdadeira química entre Hanks e Zeta-Jones. Hanks ainda a disfarça, mas Zeta-Jones não é actriz para tanto. Fora da pose de femme fatale parece perder o pé e não consegue ser credível naquelas suas mudanças de humor permanentes. Não conseguimos ver muito de uma possível ligação entre Cruz e Torres mas, pelo menos, Diego Luna (sublime o que faz com o que tem) consegue ser altamente convincente na sua demonstração de amor.

Outras pequenas coisas poderiam ser sugeridas, mas a verdade é que se trata apenas disso, de pequenas coisas. O problema está no facto de serem estas pequenas coisas que trazem a beleza e o sublime a um filme. É nos pequenos pormenores que nos dá a ver ou que nos esconde que um realizador nos encanta verdadeiramente. Spielberg sabe fazê-lo, mas tem momentos em que não parece estar para se dar ao trabalho.

The Terminal: um mau filme? Antes pelo contrário. É bastante bom. Colocado na carreira de Spielberg há 10 ou 15 anos atrás poderia passar pela sua obra maior. Neste contexto, porém, não passará de um filme que a maioria dos realizadores nunca conseguirá sequer aspirar, mas que não passará do meio da tabela na lista do realizador.

por uma vez, e só por esta vez, deixo a minha classificação ao filme: 15/20. E fico à espera da indignação...

Nove anos depois

Há 9 anos atrás foi possível ver a história de uma noite aparentemente perfeita vivida entre um jovem americano e uma jovem francesa numa Viena a alternar o antigo com o moderno. Todo o filme perpassava um cheiro a nostalgia por um tempo ainda não vivido. Entravam em conflito elementos de modernidade actual (na altura) com elementos de passado (toda a cidade em si mesma) e de futuro (a mobilidade absoluta da Europa, que só se tornou verdadeiramente realidade um pouco depois).

Nessa noite tínhamos visto dois jovens, ingénuos e amantes da vida, a dialogar sobre tudo, do amor à existência, passando mesmo pela reencarnação ou pelas diferenças entre homens e mulheres. Os melhores diálogos eram, contudo, aqueles que não se ouviam: a química entre Jesse (Ethan Hawke), Céline (Julie Delpy) e o espectador, ou melhor, a câmara, manipulada por Richard Linklater. Antes do Amanhecer filmava, mais que uma história, uma vivência, uma experiência. Por isso mesmo se tornou um filme de culto por e para uma geração. Por isso, apesar de muitos diálogos parecerem datados, o encanto continua lá.

No final do filme ficava a promessa do reencontro, daí a seis meses, na mesma plataforma da estação onde se despediam. Víamos depois o comboio a partir levando Céline e Jesse a partir na direcção oposta. O filme terminava com algumas imagens finais de Viena, como que a prometer um regresso ou a fazer uma despedida definitiva. Era dúbio. Tentava deixar a dúvida. Não só no espectador como também nos próprios protagonistas.

Agora, nove anos mais tarde, sabemos a resposta. Não vou dizer o que se passou. Quem o quiser saber será certamente um velho amigo de Jesse e Céline e irá concerteza revê-los a Paris Antes de Anoitecer. Podemos, apesar de tudo, assumir que o encontro não terá decorrido da forma esperada a início.

O filme começa da forma que acabou o anterior: mostrando a cidade onde a acção se irá passar. O problema é que este não é um filme, é apenas um diálogo de 80 minutos. Jesse foi a Paris promover o livro que escreveu sobre a noite de nove anos antese reencontra Céline. Estão diferentes, mais velhos, mais marcados por uma vida que não lhes corre como desejariam. Estão a fazer o balanço da vida e recordam as 14 horas passadas juntos em Viena, aquele que parece ser o ponto alto de uma vida. E, mais uma vez, a magia acontece: Delpy e Hawke continuam com uma química perfeita. Tal como Céline e Jesse. Contam as suas vidas, os seus projectos e sonhos, concretizados ou não. Falam de famílias e de ideias. Contam histórias e piadas. E há música. E choro e riso. Há uma vida condensada em 80 minutos de filme escritos ao longo de 9 anos de cartas, e-mails e discussões entre os actores e o realizador.

Os filmes "Antes..." são, mais que filmes, pequenos projectos pessoais em que os protagonistas fazem entrar as suas almas. Descrever o filme em si mesmo seria dar o diálogo ao longo dos 80 minutos. Descrever a sensação do filme seria falar de amor, mesmo aquele que mais não é que platónico. Ou será?

O final deixa a resposta em aberto, como que a convidar à interpretação e desejo de cada um. A situação e as personagens foram, novamente, apresentadas. Agora cabe ao espectador decidir. Porque se fomos voyeurs do reencontro, não temos necessariamente que o ser do resto das suas vidas, quaisquer que venham a ser.

PS - este post foi reescrito por pedido, uma vez que acabava por contar o final da história. Apesar de eu achar que aquilo que escrevi antes não retiraria o encanto ao filme, compreendo as razões e concordo com o pedido. O texto original será republicado um dia mais tarde, quando suficiente tempo tiver passado (não, não serão nove anos).

quinta-feira, outubro 14, 2004

Danos Colaterais

Collateral é a proposta mais recente de Michael Mann, um dos cineastas mais interessantes da Hollywood de hoje.

A história apresenta-se de forma simples: um assassino chega a Los Angeles para matar 5 pessoas numa única noite. Para andar pela cidade, escolhe seguir num táxi. A partir daqui desenvolve-se a acção.

Está claro que, com Michael Mann, a acção não ficaria por aqui. O filme começa por fazer uma apresentação simples das personagens: o Taxista - excelente Jamie Foxx, e o Assassino(1) - Tom Cruise. O Taxista é apresentado como um homem conformado com a sua vida, que sonha com um negócio próprio que vai preparando em todos os detalhes enquanto faz as suas jornadas nocturnas de táxi. Mais tarde viremos a saber que está ainda preso à sua mãe, a quem mente sobre o seu trabalho para a fazer feliz. O Assassino é, basicamente, um niilista. Isso mesmo pode ser visto na sua sequência incial, em que chega ao aeroporto, fato de bom corte, óculos escuros, barba rala e um ar de desinteresse por tudo o que o rodeia. Esse será tal o momento de definição do filme: a apresentação de um homem com uma missão mas sem interesse em nada.

Chamaram à personagem de Cruise "um samurai dos tempos modernos", um homem cujo objectivo na vida é apenas cumprir as suas missões de morte. Esta definição surge, obviamente, em alusão à sua personagem de The Last Samurai. O problema é que Cruise não consegue dar à sua personagem a espessura, ou falta dela, que a mesma requer. Nos momentos pseudo-filosóficos, Cruise parece sempre pouco à vontade nos diálogos: os momentos jazzísticos com referências "cool" a Miles Davis saem forçados, rápidos e com demasiada ausência da vibração jazz. Sente-se que é tudo artificial, programado, falta o improviso e a pausa, o silência e a contemplação que se desejam para esses momentos. As cenas poderiam funcionar noutro filme, mas neste soam a falso. Quanto às cenas em que o Assassino é revelado como alguém sem profundidade, que se limita a debitar umas quantas ideias nas quais nem sequer acredita, Cruise deixa passar a sensação que haveria mais, que a personagem é mais que aquilo que parece. Ou seja, dá-lhe espessura. Isto acaba por arrasar com o seu desempenho, o qual apenas se salva nas sequências de acção pura.

Jamie Foxx, por outro lado, tem o oposto. Consegue criar ua personagem frágil, embaraçada pelas circunstâncias que fogem ao seu controlo, ausente num mundo hostil. Nos únicos momentos em que oTaxista tem que se alcandorar perante as circunstâncias, Jamie Foxx dá ao papel imagens de força e de determinação, numa acção em tudo oposta às de Cruise. Esta nem sequer é a primeira vez em que Foxx demonstra esta capacidade: a anterior tinha sido também num filme de Mann, Ali, em que desempenha um papel de judeu negro e alcoolizado que é o anjo inspirador de Muhammed Ali. Um dos seus melhores momentos surge quando, num clube, é obrigado a fazer-se passar pelo Assassino e confrontas o seu empregador, papel representado por Javier Bardem (cada vez maior na sua arte de representar, está impressionante).

No resto, Mann foge a criar personagens muito complexas. Jada Pinkett Smith recebe uma personagem com algo para mostrar, mas muito pouco para trabalhar. Os outros actores têm uma passagem tão efémera quanto simbólica: são apenas alvos para o Assassino. A verdadeira grande personagem de Mann acaba por ser a Los Angeles nocturna, território de caça, seja sexual, simbolizada nos clubes de dança, seja musical, no clube de jazz, ou então mesmo de caça pura, simbolizada pelo Assassino e pelo coiote que, num momento sublime, passa em frente ao táxi.

Mann, tal como tinha feito no passado, mostra o seu gosto pela paisagem urbana nocturna, uma paisagem urbana que lhe parece permitir filmar o lado obscuro da natureza humana. No mundo obscuro de Los Angeles, consegue criar uma imagem estilizada - que ameaça tornar-se na sua marca pessoal - que serve à natureza dúbia do Assassino e que permite ao filme algumas das suas melhores sequências.

A saber: a do tiroteio na discoteca. Espaço claustrofóbico, ampliado pelo número de pessoas em volta dos personagens, atiradores como os cegos na fábula(2), um alvo que percebe que o é mas sem nunca saber o que se passa à sua volta. No meio da confusão, Mann nunca perde o fio à meada e consegue que nós também o sigamos. Uma cena de acção do melhor dos últimos anos (a atirar os elogios a Bourne Supremacy para o fundo lamacento do Loch Ness).

A outra sequência é a do escritório, já ao amanhecer, quando se começam a ver os primeiros raios de sol em espaços escuros e que permitem desenhar contornos algo fantasmagóricos num espaço - novamente - fechado. Uma sequência que tem tanto de suspense como de claustrofobia: tanto das personagens como dos espectadores.

O final, apesar de interessante, especialmente devido aos melhores momentos de Tom Cruise, acaba por desiludir na sua indiferença. Cai mal no filme, especialmente dado o tom desenvolvido anteriormente.

Conclusão: um bom filme, sem dúvida. Tal como todos os filmes de Mann, poderia ter uns 20 minutos menos, mas não se dá o dinheiro por mal empregue. Ainda assim será o seu filme mais fraquinho dos últimos anos.

(1) - Assassino vem de Hashashin, uma tribo de origem árabe que era "contratada" durante o tempo das cruzadas para assassinatos especializados que apenas podiam ser realizados com o sacrifício da própria vida. Para chegarem ao estado mental desejado, ingeriam drogas alucinogénicas: haxixe. Daí o nome. Neste filme Cruise é o Hashashin moderno, capaz de assassinatos impossíveis que, no fim, paga com a vida, e a sua droga é o jazz.

(2) - A fábula dos cegos consiste em três cegos tentando descrever um elefante. Um toca na pata e diz "Um elefante é como uma árvore", o segundo na tromba e diz "Um elefante é como uma corda" e o terceiro na cauda e diz "Um elefante é como uma serpente". Cada um descreve o que "vê" mas ninguém percebe o que se passa no geral.