segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Sem Soul

Vi ontem o filme Ray. Neste momento já sei que Jamie Foxx ganhou o óscar de melhor actor pela sua composição de Ray Charles. O filme nada mais quer mostrar que o genial músico, é apenas um one-man show. O que surge a mais é de forma quase involuntária.

Primeiro ponto: sem dúvida que Jamie Foxx é um Ray Charles credível. É parecido com o músico, move-se como ele, parece tocar como ele (e para isto compare-se com a aparição que o próprio Ray Charles fazia em The Blues Brothers) e, para todos os efeitos, tornou-se Ray Charles. Só que é aí que está o problema. Com tantas referências sobre Ray Charles, inclusivamente com a possibilidade de ter convivido com Ray Charles, Jamie Foxx perdeu a oportunidade de compor a personagem. O Ray Charles que vemos é alguém sem alma, sem uma vida própria, limitando-se a ser apenas uma marioneta nas mãos de Foxx. A interpretação é soberba e a sua técnica inatacável, mas para uma personagem com Ray Charles pedia-se mais, pedia-se alma, a mesma alma que Foxx demonstrou num filme vergonhosamente subvalorizado de Michael Mann, Ali, onde desempenhou o papel de "Bundini" Brown, o inspirador de Ali, e para o qual construiu uma actuação soberba sem ter qualquer referência sobre o mesmo. Aliás, Taylor Hackford, realizador de Ray, poderia aprender qualquer coisa com Mann sobre como fazer biopics.

Segundo ponto: a alma "soul" da história. Pessoalmente temia que o filme fosse um gigantesco videoclip, com momentos dramáticos a intercalar os números musicais. Infelizmente nem isso chegou a ser. Todas as músicas são interrompidas a meio - senão antes - e cingem-se quase exclusivamente aos sucessos de Ray Charles. Falta, para dar vida ao filme, um único momento que cumprisse uma música completa. Da mesma forma, o desfiar dos diversos espectáculos de uma tournée mundial, simbolizados pelo apresentador a saudar as diversas cidades nas mais diversas línguas, também nada serve para o filme, sendo um absoluto desperdício de película. Também a sua luta silenciosa contra a segregação e o racismo é escondida do filme, apenas surgindo no episódio da recusa em actuar para uma audiência segregada. A sua prisão é quase ignorada, ficando esse episódio como que branqueado. Faltam pedaços importantes da vida de Ray Charles, os quais seriam mais importantes que os patéticos encontros com o cadáver do irmão.

Terceiro ponto: as mulheres. Kerry Washington, Regina King e Sharon Warren compõem personagens credíveis, quase que as únicas com verdadeira força no filme. Washington no papel da esposa de Ray Charles, apresentando uma força tranquila, King como a amante dele, numa foça avassaladora, ciumenta e possessiva e, por fim, a força determinada de Warren, no papel da mãe de Ray Charles, a melhor interpretação de todo o filme - incluindo a de Foxx - uma vez que poucos referenciais teria sobre a sua personagem e a torna credível a toda a extensão. Rouba todos os momentos do filme e faz desejar que a história se passasse apenas na infência de Ray Charles para a podermos ver mais vezes.

Conclusão, filme medianíssimo que se salva por algumas interpretações muito bem conseguidas, ainda que a mais saudada delas seja a que menos toca. Foxx lá levou o óscar, mas se ele tivesse sido entregue antes às suas actrizes secundárias estaria em muito melhores mãos. Já Taylor Hackford, agora que completou o seu projecto de vida, mais vale que se reforme. Aquilo que ele tem para dar ao cinema não é novo.